quarta-feira, 21 de abril de 2010

A Tempestade

PRIMEIRA PARTE (est. 70 a 73): primeira fase da tempestade, observada através dos seus efeitos no interior da nau de S. Gabriel, daí o poeta recorrer ainda a algumas formas verbais perifrásticas, com os auxiliares «ir» e «vir» [“vinha refrescando” (est. 70, v. 5), “nos imos alagando” (est. 72, v. 8)] para sugerir o progressivo agravamento da situação.
SEGUNDA PARTE (est. 74 a 79): acentua-se a fúria da tempestade, cuja descrição é agora menos técnica e mais retórica. O poeta utiliza uma enorme variedade de recursos estilísticos para sugerir a grande violência dos elementos:

• As orações subordinadas consecutivas (transmitem uma consequência expressa na oração subordinante. São introduzidas por conjunões e locuções consecutivas. A oração subordinada consecutiva é muitas vezes anunciada na oração subordinante por um elemento correlativo como tanto, tão, tal, de tal maneira, de tal modo) de sentido hiperbolizante:

“os ventos eram tais, que não puderam/mostrar mais força de ímpeto cruel” (est. 74, vv. 1-2);

“Nem as fundas areias, que pudessem/Tanto os mares, que em cima as revolvessem.” (est. 79, vv.7-8)


• Uma grande variedade de adjectivos, por vezes no superlativo absoluto sintético:

• Na estrofe 76, a sugestão do rápido movimento ascendente e descendente para que contribuem as formas verbais “subiam” e “desciam”, a repetição de “agora … agora”, as sensações visuais (“a noite negra se alumia”, “os raios em que o Pólo todo ardia”) e a hipérbole (versos 5 e 8);

• A tendência hiperbolizante é visível também nas alusões aos comportamentos dos animais marinhos (estrofe 77, vv. 7-8), nas duas comparações mitológicas da estrofe 78, relativas aos raios e relâmpagos, e na descrição dos montes, das árvores, das raízes e das areias do fundo do mar sob o efeito da tempestade (est. 79).

TERCEIRA PARTE (est. 80 a 83): Súplica de Gama para ter protecção divina, rica em:

• Adjectivação (“confuso de temor, da vida incerto”, “remédio santo e forte”, “Divina guarda, angélica, celeste”, “Sirtes arenosas e ondas feias”, “alagado e vácuo mundo”, “novos medos perigosos”, “casos trabalhosos”, “ditosos”, “agudas lanças Africanas”…),

• repetições (“ora […] ora”, “Tu […] tu”, “De quem […]/De quem […]/De quem […” – anáfora).

QUARTA PARTE (est. 84): o poeta sublinha o facto de a súplica do Gama não ter diminuído a força da tempestade e, portanto, os recursos estilísticos usados são semelhantes aos da segunda parte:

• A comparação: “os ventos, que lutavam/Como touros indómitos”;

• A adjectivação (“relâmpagos medonhos”, “feros trovões”);

• A hipérbole (“[…] que vem representando/Cair o céu dos eixos sobre a terra, /Consigo os elementos terem guerra”.

QUINTA PARTE (est. 85 a 91): intercessão de Vénus, ao nascer do dia, é que vai acabar com a tempestade. Daí o uso de:

• adjectivação de conotações positivas (“amorosa Estrela”, “Sol claro”, “e visitava/A Terra e o largo mar, com leda fronte” (est. 85, vv. 3-4);

• comparação (“Mostrando-lhe as amadas Ninfas belas,/Que mais fermosas vinham que as estrelas” (est. 87, vv. 7-8)
EM SÍNTESE
A tempestade é um episódio naturalista em que se entrelaçam os planos da viagem e o dos deuses, a realidade e a fantasia. É o último dos grandes perigos que Vasco da Gama teve de ultrapassar antes de cumprir a sua missão, a chegada à Índia. Camões deve ter aproveitado a sua própria experiência de viajante e de náufrago para descrever de forma tão realista a natureza em fúria (relâmpagos, raios, trovões, ventos, ondas alterosas) e, sobretudo, a aflição, os gritos, o temor e o “desacordo” dos marinheiros, incapazes de controlar a situação, devido à violência dos ventos.
Podemos considerar cinco momentos na organização desta descrição:
1. Estrofes 70 a 73: transição da calma anterior dos marinheiros para a movimentação desencadeada pelas ordens do mestre, após ter avistado sinais de tempestade.

2. Estrofes 74 a 79: desenrolar da tempestade vista do exterior das naus, daí o modo como Camões se lhes refere: “a possante nau” (est. 74, v.7), “a nau grande, em que vai Paulo da Gama” (est. 75, v.1) e a “nau de Coelho” (est. 75, v.6).

3. Estrofes 80 a 83: súplica de Gama a Deus para proteger a armada, pois teme a sua destruição. Para isso, utiliza três argumentos convincentes:

a. a omnipotência divina já várias vezes posta à prova;

b. o facto de a viagem ser um serviço prestado ao próprio Deus;

c. o facto de ser preferível uma morte heróica e conhecida, em África, a combater pela fé cristã, a um naufrágio anónimo, no alto mar, sem honras nem memórias.

4. Estrofe 84: continuação da tempestade, apesar da súplica do Gama.

5. Estrofes 85 a 91: Vénus intercede pelos Portugueses e ordena às ninfas amorosas que acalmem as iras dos ventos.

O Gigante Adamastor

Introdução (est. 37, 38, Canto V):

• Preparação do ambiente para o aparecimento do gigante: depois de cinco dias claros, com ventos calmos, com os marinheiros “descuidados”, surge uma nuvem negra “tão temerosa e carregada” que põe “nos corações um grande medo” e leva Vasco da Gama a interpelar o próprio Deus todo-poderoso.

Aparecimento do monstro e sua descrição (est. 39, 40, Canto V).

• Caracterização directa e indirecta do monstro, sobretudo através de uma adjectivação sugestiva e abundante e da comparação com o Colosso de Rodes, para realçar a imponência da figura e o terror e a estupefacção do Gama e dos seus companheiros (“Arrepiam-se as carnes e o cabelo/A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo.” (est. 40. Vv- 7-8, Canto V).


Discurso do gigante (1ª parte) (est. 41-48, Canto V). Glorificação épica.

• Discurso de carácter profético e ameaçador, através do qual Adamastor, num tom de voz “horrendo e grosso” anuncia os castigos e danos por si reservados para aquela “gente ousada” que invadira o seu reino (dos mares):

o A “suma vingança” (a morte) de quem o descobriu (Bartolomeu Dias);

o A morte de D. Francisco de Almeida, primeiro Vice-rei da Índia;

o O naufrágio e a morte da família Sepúlveda;

o E, para além destes casos particulares, as naus portuguesas terão sempre “inimiga esta paragem” através de “naufrágios, perdições de toda sorte/Que o menor mal de todos seja a morte”.

Interpelação do Gama (est. 49, Canto V).

• Gama já incomodado com todas aquelas profecias de desgraça, interroga o monstro sobre a sua identidade. É essa pergunta tão simples que promove a profunda viragem do seu discurso, fazendo-o recordar a frustração amorosa passada e meditar na sua actual condição de degredado solitário e petrificado.


Discurso do gigante (2ª parte) (est. 50-59, Canto V). Lirismo amoroso e elegíaco.

• A resposta à pergunta de Gama tem carácter autobiográfico e tom elegíaco (lamentação, triste) (“com voz pesada e amara”) e disfórico, pois assistimos à evocação do seu passado amoroso infeliz.


Epílogo (est. 60, Canto V).

• Súbito desaparecimento do Gigante, agora choroso pela recordação do seu passado triste e levando consigo a nuvem negra e o “sonoro bramido” do mar com que aparecera. Pedido de Gama a Deus para que remova “os duros casos, que Adamastor contou futuros”.

A Saber:

• Adjectivação expressiva [“cortadora” (est. 37, v. 6); “temerosa”, “carregada” (est. 38, v. 1)];

• Comparação ["Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso, / Que pareceu sair do mar profundo" (est. 40, vv. 5-6);

• Polissíndeto (repetição expressiva de conjunções coordenativas) [De disforme e grandíssima estatura; / Os olhos encovados, e a postura / Medonha e má e a cor terrena e pálida; / Cheios de terra e crespos os cabelos,"].
• Sensações: visuais (predomínio do negro e das trevas) e auditivas (“Bramindo, o negro mar de longe brada, / Como se desse em vão nalgum rochedo” (est. 38, vv.3-4);


• Uso do gerúndio [“cortando”, “assoprando”, “estando”, “vigiando” (est. 37), “bramindo” (est. 38)] para caracterizar a serenidade da situação anterior, de repente alterada pelo aparecimento da nuvem ameaçadora, traduzido pelo uso do presente e do imperfeito do indicativo [“escurece”, “aparece” (est. 37), “brada”, “vinha” (est. 38)];


• Uso da aliteração em “r” e dos sons fechados e nasais, que pela sua maior amplitude, sugerem o ruído do mar (onomatopeia): [“Bramindo o negro mar de longe brada” (est. 38, v.3)];


• Uso da apóstrofe na primeira parte do discurso do Adamastor[“Ó gente ousada, (est. 41, v.1)]. Nesta parte do discurso, predominam o Imperativo (“ouve”, “sabe”), os Futuros do Indicativo [“terão”, “farei”, “acabará”, “vereis”, “serei”, “porá”, “virá”, “trará”, “terá dado”, “deixará”, “verão” (quatro vezes)] e do Conjuntivo (“fizerem”, “fizer” (duas vezes), “ficarem”, “abrandarem”), adequados ao carácter ameaçador e profético;
• Metáfora [“E navegar meus longos mares ousas, / Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho, / Nunca arados de estranho ou próprio lenho” (est. 41, vvv. 6-8)] para sugerir implicitamente a comparação dos mares a campos “arados”, lavrados pelas naus.
• Gradação: “Ou fosse monte, nuvem, sonho ou nada?” (est. 57, v. 4).

Despedidas em Belém

“A construção desta cena é feita principalmente através da alternância de planos: desde o plano de conjunto inicial (“as gentes (...) por perdidos nos julgavam”) aos planos de pormenor (“as mulheres (...) os homens”) e mesmo aos grandes planos (“Qual vai dizendo (...) Qual em cabelo”). Termina com novo plano de conjunto, na estrofe 92, e com a narração do que se passava a bordo.


A consternação era geral na cidade e a bordo: tinha-se a noção dos perigos, de que o caminho era “tão longo e duvidoso”, de que, muito provavelmente, os que partiam não iriam regressar. Deste clima de consternação davam conta as mulheres “cum choro piadoso” e os homens “com suspiros que arrancavam". Particularmente débeis eram, contudo, as mulheres: “Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso /Amor mais desconfia acrescentavam/A desesperação e frio medo/De já nos não tornar a ver tão cedo”. Surgem então, como a comprová-lo, dois grandes planos, com as palavras de uma Mãe e de uma Esposa, personagens colectivas, dadas em discurso directo.

A mãe que nos fala na estrofe 90 é o símbolo da velhice que se abandona, em troca de uma morte mais que certa no mar. Daí que as suas palavras sejam de incompreensão e de perplexidade, dada pelas interrogações angustiadas que ficam no ar, sem resposta. (…)

Repare-se nas sonoridades suaves em i (vogal doce), contrastando, depois, com a dureza das sonoridades em vogal aberta a. O mesmo discurso dorido, perplexo, interrogativo é a tónica das palavras da Esposa, na estrofe 91. (…) Como se vê, esta Esposa interroga, queixa-se e, de certo modo, censura e acusa. A adjectivação é extremamente expressiva: “doce e amado esposo”; o amor é reafirmado como “vão contentamento” (“engano de alma ledo e cego” se lhe chamara no episódio de Inês de Castro), “sem quem não quis amor que viver possa”, “afeição tão doce nossa” (veja-se a doçura destas aliterações em s).

Aquele que parte não tem o direito de o fazer, pois aventura algo que lhe não é pertença privada, “essa vida que é minha e não é vossa”. Ainda no capítulo das sonoridades, repare-se nas aliterações e rima interna do último verso: “Quereis que com as velas leve o vento?” Trata-se de algumas das mais belas palavras de amor jamais escritas, sobretudo tendo em conta que se trata do amor conjugal, raramente tratado na nossa tradição lírica ocidental.

Após estes dois grandes planos, retoma-se na estrofe 92 a visão de conjunto: frágeis são os que ficam, mães, esposas, irmãs, é certo, mas também os velhos e os meninos. A própria natureza se comove e se associa numa dor à escala cósmica. Aos que partem só resta uma saída: partir depressa, sem o “despedimento costumado”.



Amélia Pinto Pais, Ensinar Os Lusíadas, 1.a ed., Areal Ed., 1997